segunda-feira, 17 de março de 2014

| Edmar Conceição |







Hoje eu não tinha planos de escrever sobre minhas reminiscências infantis, mas me cativou a luta que acabo de assistir, nesta manhã, entre meu filho desesperado com um cabo de vassoura e um cabrito já bem crescido, dotado de cabeçadas certeiras. Diante dos golpes desajeitados de Vinícius, Joana lavava os pratos, rindo de sua falta de destreza e me cobrando por que eu nunca o ensinei a se defender.

Não poderia ajudar meu filho nesta empreita, acho que, na idade dele, eu nem me arriscaria ir para a arena, sempre descontei tudo nas palavras. Acho que Gabriel Vinícius tem mais “sangue no olho”. Agora, por exemplo, mesmo mancando e com a mão no quadril dolorido, ele comemora seu espírito de guerreiro quixotesco anunciando uma vitória contestável, haja vista que, segundo meus cálculos, ele levou cerca de quinze cabeçadas contra apenas cinco pauladas e seis gritos de valentia.

As memórias infantis trazem uma nostalgia doce, são dias raros como também escreve Carrascoza, um “tempo sem pressa da infância, e o menino feliz como se à beira de um rio, para nadar”. Tem razão, quando Quintana diz que a lembrança é uma forma de encontro, pois minhas tardinhas de domingo, por exemplo, tinham o sabor da pipoca do Zé Dari; queria tanto achá-lo com seu carrinho verde tão cobiçado.

Tinha o privilégio do trem “passar” atrás de casa, mal soava o seu apito e, eu e meu pai, corríamos para os fundos para disputar quem acertaria o número de gomos daquela enorme lagarta de fogo que acendia tão facilmente o brilho dos nossos olhos ao vê-la passar. Também, era bom competir com minha avó paterna as coxas de galinha no almoço aos domingos, gostava também de vê-la se maldizer de suas cartas ruins em nossas partidas de baralho, sempre acompanhada de coca-cola e do pão quente da padaria de Seu Raimundo. Quando a tarde caía, antes que ela me pedisse para pegar os galhos de erva-cidreira para o seu chá da noite, eu desabava no seu colo e só a deixava sair depois que ela cantasse suas cantigas da igreja, com direito a cafuné. Ela sempre cedia dizendo: “Eta, Dimá danado, Meu Deus!”.

Mal tinha aprendido a soletrar, minha mãe já comprava livros para mim, bastava passar um vendedor ambulante anunciando a aquisição de uma educação exemplar. Embora cercado de enciclopédias de história, geografia e clássicos de literatura, eu apreciava mais os manuais de educação sexual, principalmente os ilustrados, embora alguns deles dissessem que algumas “estrepolias carnais” davam fraqueza nas pernas e nasciam pelos nas mãos.

Gostava mesmo era de gibis, pena que um dia minha mãe teve a infeliz ideia de me presentear uma mesinha para os meus estudos e escritos. Nada contra o mobiliário que me serviu tanto, mas me doeu quando ela pegou, sem que eu soubesse, minhas revistas mais estimadas para colar e envernizar suas páginas em toda mesinha.

Adoraria ter algumas fotos minhas não tiradas. Queria-me ver jogando bola no campo de areia, das minhas caçadas vazias no Tanque do Prudente, meu alumbramento na piscina de Abrantes e até do olhar sisudo do padre quando percebeu que meus pés deviam estar mais zelosos na cerimônia do lava-pés, embora ele tenha se vingado de mim, na sacristia, quando, no sorteio, fui premiado com o papel de Judas Iscariotes.

É, Quintana, também tinha tanta coisa na minha pequena província que “era absolutamente desnecessário fazer poemas”. Um dia desses, eu li para meu filho um livro de Manoel de Barros e ele gostou, sorriu tanto quando eu disse que o “ovo de lobisomem não tem gema”, que “na beira do entardecer o canto das cigarras enferruja” e a “formiga não tem dor nas costas”. Depois ele também soltou suas pilhérias, disse que o Brasil, às vezes, só cheira bem porque já foi um dia “colônia”. Rimos juntos num êxtase de acriançamento.

Jamais quero perder minhas meninices. Três meses atrás, fui fazer uma consulta espiritual com o francês Gilles, queixando-me do meu ânimo pessimista e da falta de vontade de escrever. Ele levou-me para um quarto cheio de almofadas e, sem tocar em mim, iniciou seu ritual com ruídos e muitos arrotos. Terminada a sessão, animou-se em ver “o retorno do brilho dos meus olhos” e disse que tinha “um menino grudado em mim que não queria sair”, mas que conseguiu tirá-lo. Apesar de vê-lo bem ofegante com o seu trabalho, eu perdi um pouco a timidez e disse: “Gilles, se tem alguma coisa que prezo é o menino que há dentro de mim, tem como fazê-lo voltar de novo?”. O francês riu e disse, com seu sotaque cativante, que eu me acalmasse, uma vez que se tratava de outro menino e que “meu coração e minhas mãos eram de criança”. Voltei para casa sorrindo e curado.



 Julho de 2012