quarta-feira, 2 de abril de 2014

| Edmar Conceição |

18 de março de 2014








Meus passos ainda estavam apressados quando abri a ultrassonografia mamária de minha mãe.
As palavras impressas vieram junto com um sopro frio em todo o meu corpo, indicando a volta do fantasma perverso que tanto nos apavorou: “Nódulo sólido em mama direita. Categoria BI-RADS 5. Achados ecográficos altamente suspeitos, prosseguir com medidas apropriadas”.

O sol já tinha caído, mas, na verdade, anoitecia em mim a pele crespa da penumbra, tecendo um pesadelo noturno insistente. O bafo do câncer, desta vez, chegava com um prenúncio violento, exibindo, sem pudor, sua sede afoita.

Quando avistei minha mãe, não precisei dizer muita coisa, seu faro afiado adiantou-se: “Não precisa dizer nada... já sei que deu zebra”. Não encontrei muito consolo nas palavras que me cercavam, apenas disse que precisávamos ser fortes, no dia seguinte iríamos ao médico e que era importante pensar de forma positiva.

“O médico disse que era bronca se o câncer voltasse na mesma mama... eu não sei nem o que estou sentindo... mas eu não vou passar por tudo aquilo de novo”.

Tentei acalentar minha mãe com todo o arsenal que estava em minha volta: água com açúcar, um afago leve no seu ombro, pediria uma licença do trabalho, trancaria a faculdade, não cometeríamos os erros de antes, iríamos juntos a Recife procurar um tratamento melhor.

“Não vou lhe dá esse trabalho, o tratamento é demorado... não vou prejudicar novamente sua faculdade e seus compromissos”.

Animei a nossa possível ida ao litoral, falei que seria também bom para mim, seria tudo novidade. Lembrei, também, que sempre tenho uma inspiração singular quando fico à beira do mar, quem sabe escreveria um novo livro: “Crônicas do Recife”.

Mal nascera a manhã e já colhíamos o pesadume do silêncio da travessia, o encontro com o mastologista tinha o peso de cerca de cem quilômetros. Sentia uma vontade imensa de deitar no colo materno, como fazia quando criança nas vezes que algo me atormentava, pedindo a intervenção divina e enumerando uma lista infinita de promessas, muitas delas impossíveis de cumprir.

Ao chegar ao consultório, como se fôssemos retirantes do vazio de nossas esperanças, com os olhos mendigos de consolo e, em poucas palavras, entregamos o fardo do diagnóstico ao médico. Cada vez que ele folheava o laudo médico, sentíamos as unhas da angústia cravarem dentro de nós, poupando qualquer desabafo. No entanto, veio o inesperado:

“Não estou entendendo, cadê o exame novo que eu pedi, esse laudo é o antigo, de dois anos atrás. Acho muito improvável que o câncer tenha retornado!”.

Não me aborreci com a moça do laboratório que me entregou o exame antigo como se fosse o novo, nem a minha imprudência por não ter percebido o descuido. Tenho quase uma dezena de promessas para cumprir, mas tudo foi ofuscado com o riso e a leveza sapeca quando brindamos a saúde materna, distante do rastro do câncer.

Certa vez, ouvi alguém dizer que a vida é um “sobe e desce”. Acho que concordo com a assertiva, também acredito que as estrelas e o abismo dependem da perspectiva de qual horizonte você abre a sua janela. Sei que depois desse episódio preciso investir melhor no meu olhar, mas confesso que não sei olhar para o céu sem tirar meus óculos, como se o borrão dos astros deixassem meu caminho com mais contornos, mais imprevisível e inventado, diluindo até mesmo os achados ecográficos da medicina.